quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Tomé em Goiás


UM DOS CRÍTICOS LITERÁRIOS  mais proeminentes do século 20, o canadense Northrop Frye, defendia que a Bíblia, com todo o seu cortejo imagético, é a influência mais decisiva sobre a literatura ocidental. A íntima relação entre o livro sagrado da cristandade e a poética literária parece ter sido também o caminho adotado pelo não menos proeminente crítico norte-americano, Harold Bloom. A desenvoltura com que ele transita entre personagens bíblicas e suas representações literárias é realmente impressionante. Em O Livro de J e Jesus e Javé, Os Nomes Divinos, o teórico da angústia da influência apresenta a divindade hebraica, Javé, ou Jeová, como um autêntico destruidor de torres com a intenção de afirmar o seu poder, sendo o caso mais célebre o da Torre de Babel. Se for levado em conta que em Jesus e Javé... Harold Bloom vê no Alá do islamismo a ressurreição cultural do Jeová hebreu, a ideia ganha foros de modernidade, ainda que alegórica, com o fundamentalismo que desembocou no 11 de setembro, quando da explosão das torres gêmeas nos Estados Unidos da América.
No entanto, o jogo literário se dá exatamente na confluência entre aquilo que foi e aquilo que poderia ter sido, conforme aponta Aristóteles em sua Arte Poética. No universo literário, que prefigura o escritor como um demiurgo a construir e a reconstruir mundos, uma torre pode transformar-se em uma biblioteca com um toque de realismo mágico, onde livros importantes e outros nem tanto se dispõem de maneira simétrica, conferindo ao eventual leitor todo um mundo infinito de fábulas, mediado pela linguagem única e universal do imaginário, numa autêntica antibabel. Foi uma biblioteca assim incrível que o escritor carioca Alexandre Raposo concebeu, para dela retirar três obras a serem adaptadas para o grande público, numa trilogia instigante. Com o lançamento de São Tomé na América, no apagar das luzes de 2011, completa-se a tríade formada pelos romances Inca e Memórias de Um Diabo de Garrafa, que foram agora relançados em um pacote único pela editora Espaço & Tempo, braço literário da Garamond, a nova casa publicadora de Raposo, que batizou os romances como pertencentes à coleção A Torre do Tempo, numa referência à biblioteca mágica por ele concebida na fonte inesgotável do processo de criação de um escritor.
A propósito, o recurso de que Raposo lança mão é engenhoso. Em Como Falar dos Livros Que Não Lemos?, Pierre Bayard evoca o bisonho personagem Strumm, do romance O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, que pretende oferecer ao seu soberano uma ideia original. Para tanto visita uma biblioteca, com o projeto de ler um livro por dia para logo tornar-se um intelectual. Após percorrer com o bibliotecário um longo trecho e contabilizar 700 mil volumes, ele pergunta o total de obras que compõe aquela magnífica torre de livros. À resposta de que ela é formada por 3 milhões de exemplares, Strumm calcula com lápis e papel que seriam necessários 10 mil anos para completar a leitura do acervo, dentro da expectativa otimista de ler um livro por dia. Bayard reflexiona, pois, que selecionar um livro é estabelecer o gesto involuntário de fechamento de todos os outros livros preteridos. Assim, a biblioteca sobrenatural em formato de torre de que Alexandre Raposo pinça três volumes romanescos para adaptá-los, por assim dizer, guarda uma curiosa e relativa correspondência com o bibliotecário de Musil, numa remissão metafórica ao repositório da cultura universal.
Os caminhos percorridos pelos apóstolos de Jesus Cristo em suas pregações sempre despertaram a curiosidade de estudiosos em geral, seja para a reconstituição de percursos históricos, seja para a consideração de lendas que se formaram em torno dessas personagens místicas. Em Compostela, refaz-se o caminho percorrido por São Tiago, prática que teria o dom de promover uma renovação espiritual na vida do peregrino. Mas há um caminho apostólico, ou antes, uma lenda associada a uma peregrinação apostólica inusitada, que é associada à presença no Brasil do apóstolo São Tomé, o protótipo cristão da dúvida que de vez em quando embala a consciência religiosa. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, refere-se a apontamentos lendários e a possíveis evidências da estada de São Tomé em terras brasileiras.
Em São Tomé na América, Alexandre Raposo reescreve este mito luso-brasileiro com mestria. A exemplo do que já fizera em Memórias de Um Diabo de Garrafa, o autor reelabora em termos literários um acontecimento de natureza lendária, numa variante da proposição aristotélica sobre a relação entre a história e a literatura em seus escritos sobre a poética. Assim, o que poderia ter sido se torna um tecido narrativo, uma produção literária em que a verossimilhança proporciona ao leitor o prazer do texto a que Michel Foucault e os teóricos da estética da recepção faziam alusão. Para a surpresa de quem lê, em São Tomé na América é apresentada a versão de que realmente quem esteve não só no Brasil, mas também na América espanhola, em uma involuntária missão apostólica, não foi propriamente a personagem que teve de tocar as chagas de Cristo para certificar-se de sua ressurreição, mas sim um improvisado discípulo deste representante do colégio apostólico.
Polícrates de Naxos é um jovem comerciante, herdeiro dos negócios de seu pai, que é amigo de alguém que priva da intimidade dos apóstolos de Jesus Cristo. Levado a participar de uma reunião que imaginava festiva, o jovem Naxos vai parar em um salão onde os herdeiros da mensagem de Jesus se reúnem para decidir quais as futuras ações que norteariam a religião nascente. Num estranho fenômeno para ele, que imagina estar envolvido em algum acontecimento atmosférico bizarro, como um forte trovão em um dia ensolarado, Naxos observa um relâmpago diferente, que paira sobre o ambiente e se distribui entre os doze apóstolos do fundador do cristianismo. Muito próximo a Tomé, com quem inciara um diálogo irônico e informal sobre as intermináveis discussões dos demais apóstolos, Polícrates de Naxos é contemplado com uma pequena fagulha da língua de fogo, que se dividira em duas ao aproximar-se de Tomé, como que a hesitar sobre quem deveria incidir com mais veemência. O episódio bíblico parodiado por Raposo está descrito no livro bíblico intitulado Atos dos Apóstolos.
Após refazer-se do susto, o jovem Naxos perceberá uma extraordinária mudança em sua vida. De forma sobrenatural, ele passa a comunicar-se em qualquer língua com a mesma desenvoltura, entendendo e fazendo-se entender em qualquer idioma. Preparando-se para assumir a frota naval do pai, em uma determinada viagem Polícrates e seus marujos são apanhados por uma tempestade violenta que os transporta para além das águas navegáveis conhecidas à época. Mais de cem dias em alto mar, navegando à deriva, e a desmantelada frota vai parar em uma costa diferente de tudo que conhecia. Os habitantes que ali encontraram vestiam-se de maneira inusitada e comportavam-se de forma bem diferente do que aqueles navegantes estavam habituados. Em termos literários, é apresentado o encontro entre europeus e índios brasileiros muito antes daquele que seria registrado por Pero Vaz Caminha, quando Pedro Álvares Cabral trava o primeiro contato com os nativos do que viria a ser o Brasil.
Naquele inesperado encontro, o longo esforço que os jesuítas fariam mais tarde para aprender a língua indígena foi suprido pelo dom poliglota do pentecostes a que Polícrates Naxos ficara involuntariamente exposto. No afã de saldar uma dívida que sentia possuir com o apóstolo São Tomé, por haver tomado uma fração do fogo divino destinado ao santo cristão, Naxos se investe da condição de propagador daquela religião que se lhe tornara mais familiar ainda pelo envolvimento de sua esposa com a doutrina cristã. Dublê de pregador cristão e divindade pagã, Naxos guarda alguma semelhança com o Prometeu de Ésquilo, já que o fogo divino do pentecostes permite-lhe levar o fogo da divindade judaico-cristã aos mais distantes rincões da América espanhola e portuguesa. O improvisado apóstolo vai desincumbir-se de sua gigantesca tarefa envolvendo-se em aventuras as mais diversas, nas quais figurarão elementos sobrenaturais que darão à narrativa um fundo de realismo mágico comum à literatura hispano-americana. Tudo, claro, com a fina ironia que perpassa os textos raposianos em Inca e Memórias de Um Diabo de Garrafa.
Em No País do Presente – Ficção Brasileira no Início do Século XXI, o crítico e escritor Flávio Carneiro define os dois primeiros romances de Alexandre Raposo como obras caracterizadas por um enredo incomum e personagens marcantes. Embora a cadência narrativa de São Tomé na América esteja mais leve que nos dois primeiros romances, apontando uma possível maior aclimatação do autor a todo o rigor da longa cadeia que envolve a produção de uma obra literária, as mesmas palavras do ensaísta goiano podem e devem ser aplicadas na definição deste terceiro e inédito volume que compõe a trilogia raposiana. Com esta maior leveza autoral, ganha o leitor, ganha a literatura.

GISMAIR MARTINS TEIXEIRA é Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Goiás e professor.


quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Lançamento!

A Editora Garamond e a Livraria da Travessa
têm o prazer de convidar para o lançamento do livro
'São Tomé na América' de Alexandre Raposo


Quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
Livraria da Travessa do Leblon
Av. Afrânio de Melo Franco, 290 - loja 205 A
a partir das 19h


domingo, 8 de janeiro de 2012

Capas

As capas da coleção A Torre do Tempo foram criadas e executadas pelo próprio autor, com exceção de São Tomé na América, realizada em parceria com Julio Zartos. Clique nas imagens para ampliar.