quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Tomé em Goiás


UM DOS CRÍTICOS LITERÁRIOS  mais proeminentes do século 20, o canadense Northrop Frye, defendia que a Bíblia, com todo o seu cortejo imagético, é a influência mais decisiva sobre a literatura ocidental. A íntima relação entre o livro sagrado da cristandade e a poética literária parece ter sido também o caminho adotado pelo não menos proeminente crítico norte-americano, Harold Bloom. A desenvoltura com que ele transita entre personagens bíblicas e suas representações literárias é realmente impressionante. Em O Livro de J e Jesus e Javé, Os Nomes Divinos, o teórico da angústia da influência apresenta a divindade hebraica, Javé, ou Jeová, como um autêntico destruidor de torres com a intenção de afirmar o seu poder, sendo o caso mais célebre o da Torre de Babel. Se for levado em conta que em Jesus e Javé... Harold Bloom vê no Alá do islamismo a ressurreição cultural do Jeová hebreu, a ideia ganha foros de modernidade, ainda que alegórica, com o fundamentalismo que desembocou no 11 de setembro, quando da explosão das torres gêmeas nos Estados Unidos da América.
No entanto, o jogo literário se dá exatamente na confluência entre aquilo que foi e aquilo que poderia ter sido, conforme aponta Aristóteles em sua Arte Poética. No universo literário, que prefigura o escritor como um demiurgo a construir e a reconstruir mundos, uma torre pode transformar-se em uma biblioteca com um toque de realismo mágico, onde livros importantes e outros nem tanto se dispõem de maneira simétrica, conferindo ao eventual leitor todo um mundo infinito de fábulas, mediado pela linguagem única e universal do imaginário, numa autêntica antibabel. Foi uma biblioteca assim incrível que o escritor carioca Alexandre Raposo concebeu, para dela retirar três obras a serem adaptadas para o grande público, numa trilogia instigante. Com o lançamento de São Tomé na América, no apagar das luzes de 2011, completa-se a tríade formada pelos romances Inca e Memórias de Um Diabo de Garrafa, que foram agora relançados em um pacote único pela editora Espaço & Tempo, braço literário da Garamond, a nova casa publicadora de Raposo, que batizou os romances como pertencentes à coleção A Torre do Tempo, numa referência à biblioteca mágica por ele concebida na fonte inesgotável do processo de criação de um escritor.
A propósito, o recurso de que Raposo lança mão é engenhoso. Em Como Falar dos Livros Que Não Lemos?, Pierre Bayard evoca o bisonho personagem Strumm, do romance O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, que pretende oferecer ao seu soberano uma ideia original. Para tanto visita uma biblioteca, com o projeto de ler um livro por dia para logo tornar-se um intelectual. Após percorrer com o bibliotecário um longo trecho e contabilizar 700 mil volumes, ele pergunta o total de obras que compõe aquela magnífica torre de livros. À resposta de que ela é formada por 3 milhões de exemplares, Strumm calcula com lápis e papel que seriam necessários 10 mil anos para completar a leitura do acervo, dentro da expectativa otimista de ler um livro por dia. Bayard reflexiona, pois, que selecionar um livro é estabelecer o gesto involuntário de fechamento de todos os outros livros preteridos. Assim, a biblioteca sobrenatural em formato de torre de que Alexandre Raposo pinça três volumes romanescos para adaptá-los, por assim dizer, guarda uma curiosa e relativa correspondência com o bibliotecário de Musil, numa remissão metafórica ao repositório da cultura universal.
Os caminhos percorridos pelos apóstolos de Jesus Cristo em suas pregações sempre despertaram a curiosidade de estudiosos em geral, seja para a reconstituição de percursos históricos, seja para a consideração de lendas que se formaram em torno dessas personagens místicas. Em Compostela, refaz-se o caminho percorrido por São Tiago, prática que teria o dom de promover uma renovação espiritual na vida do peregrino. Mas há um caminho apostólico, ou antes, uma lenda associada a uma peregrinação apostólica inusitada, que é associada à presença no Brasil do apóstolo São Tomé, o protótipo cristão da dúvida que de vez em quando embala a consciência religiosa. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, refere-se a apontamentos lendários e a possíveis evidências da estada de São Tomé em terras brasileiras.
Em São Tomé na América, Alexandre Raposo reescreve este mito luso-brasileiro com mestria. A exemplo do que já fizera em Memórias de Um Diabo de Garrafa, o autor reelabora em termos literários um acontecimento de natureza lendária, numa variante da proposição aristotélica sobre a relação entre a história e a literatura em seus escritos sobre a poética. Assim, o que poderia ter sido se torna um tecido narrativo, uma produção literária em que a verossimilhança proporciona ao leitor o prazer do texto a que Michel Foucault e os teóricos da estética da recepção faziam alusão. Para a surpresa de quem lê, em São Tomé na América é apresentada a versão de que realmente quem esteve não só no Brasil, mas também na América espanhola, em uma involuntária missão apostólica, não foi propriamente a personagem que teve de tocar as chagas de Cristo para certificar-se de sua ressurreição, mas sim um improvisado discípulo deste representante do colégio apostólico.
Polícrates de Naxos é um jovem comerciante, herdeiro dos negócios de seu pai, que é amigo de alguém que priva da intimidade dos apóstolos de Jesus Cristo. Levado a participar de uma reunião que imaginava festiva, o jovem Naxos vai parar em um salão onde os herdeiros da mensagem de Jesus se reúnem para decidir quais as futuras ações que norteariam a religião nascente. Num estranho fenômeno para ele, que imagina estar envolvido em algum acontecimento atmosférico bizarro, como um forte trovão em um dia ensolarado, Naxos observa um relâmpago diferente, que paira sobre o ambiente e se distribui entre os doze apóstolos do fundador do cristianismo. Muito próximo a Tomé, com quem inciara um diálogo irônico e informal sobre as intermináveis discussões dos demais apóstolos, Polícrates de Naxos é contemplado com uma pequena fagulha da língua de fogo, que se dividira em duas ao aproximar-se de Tomé, como que a hesitar sobre quem deveria incidir com mais veemência. O episódio bíblico parodiado por Raposo está descrito no livro bíblico intitulado Atos dos Apóstolos.
Após refazer-se do susto, o jovem Naxos perceberá uma extraordinária mudança em sua vida. De forma sobrenatural, ele passa a comunicar-se em qualquer língua com a mesma desenvoltura, entendendo e fazendo-se entender em qualquer idioma. Preparando-se para assumir a frota naval do pai, em uma determinada viagem Polícrates e seus marujos são apanhados por uma tempestade violenta que os transporta para além das águas navegáveis conhecidas à época. Mais de cem dias em alto mar, navegando à deriva, e a desmantelada frota vai parar em uma costa diferente de tudo que conhecia. Os habitantes que ali encontraram vestiam-se de maneira inusitada e comportavam-se de forma bem diferente do que aqueles navegantes estavam habituados. Em termos literários, é apresentado o encontro entre europeus e índios brasileiros muito antes daquele que seria registrado por Pero Vaz Caminha, quando Pedro Álvares Cabral trava o primeiro contato com os nativos do que viria a ser o Brasil.
Naquele inesperado encontro, o longo esforço que os jesuítas fariam mais tarde para aprender a língua indígena foi suprido pelo dom poliglota do pentecostes a que Polícrates Naxos ficara involuntariamente exposto. No afã de saldar uma dívida que sentia possuir com o apóstolo São Tomé, por haver tomado uma fração do fogo divino destinado ao santo cristão, Naxos se investe da condição de propagador daquela religião que se lhe tornara mais familiar ainda pelo envolvimento de sua esposa com a doutrina cristã. Dublê de pregador cristão e divindade pagã, Naxos guarda alguma semelhança com o Prometeu de Ésquilo, já que o fogo divino do pentecostes permite-lhe levar o fogo da divindade judaico-cristã aos mais distantes rincões da América espanhola e portuguesa. O improvisado apóstolo vai desincumbir-se de sua gigantesca tarefa envolvendo-se em aventuras as mais diversas, nas quais figurarão elementos sobrenaturais que darão à narrativa um fundo de realismo mágico comum à literatura hispano-americana. Tudo, claro, com a fina ironia que perpassa os textos raposianos em Inca e Memórias de Um Diabo de Garrafa.
Em No País do Presente – Ficção Brasileira no Início do Século XXI, o crítico e escritor Flávio Carneiro define os dois primeiros romances de Alexandre Raposo como obras caracterizadas por um enredo incomum e personagens marcantes. Embora a cadência narrativa de São Tomé na América esteja mais leve que nos dois primeiros romances, apontando uma possível maior aclimatação do autor a todo o rigor da longa cadeia que envolve a produção de uma obra literária, as mesmas palavras do ensaísta goiano podem e devem ser aplicadas na definição deste terceiro e inédito volume que compõe a trilogia raposiana. Com esta maior leveza autoral, ganha o leitor, ganha a literatura.

GISMAIR MARTINS TEIXEIRA é Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Goiás e professor.


quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Lançamento!

A Editora Garamond e a Livraria da Travessa
têm o prazer de convidar para o lançamento do livro
'São Tomé na América' de Alexandre Raposo


Quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
Livraria da Travessa do Leblon
Av. Afrânio de Melo Franco, 290 - loja 205 A
a partir das 19h


domingo, 8 de janeiro de 2012

Capas

As capas da coleção A Torre do Tempo foram criadas e executadas pelo próprio autor, com exceção de São Tomé na América, realizada em parceria com Julio Zartos. Clique nas imagens para ampliar.





terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Uma viagem de mais de dois mil anos acompanhando a saga de grandes civilizações. A epopéia de homens, demônios e santos, lutando por seus sonhos e ideais. Três romances históricos que o levarão em uma longa jornada através do espaço e do tempo, percorrendo mundos primitivos, misteriosos, repletos de aventura e magia. 

HÁ EM MINHA CASA uma passagem secreta, tão secreta e tão engenhosamente projetada que vez por outra me esqueço de onde está e vejo-me em dificuldades para voltar a encontrá-la. Quem a criou sabia exatamente o que estava fazendo. Nada de espelhos, paredes corrediças, nada de fundos falsos ou alçapões de mágico de circo. Principalmente, nada de sésamos ou encantamentos já que tudo isso se gasta com o tempo e evidentemente a passagem foi feita para atravessar as eras e sobreviver à ruína dos minérios. 
  Descobri-a por acaso, enquanto tentava alcançar um cachimbo caído por trás de uma cômoda. Estava eu ali deitado, rosto rente ao chão, braço enfiado debaixo do móvel, quando, inadvertidamente, dei com a mágica revelada: o insólito desvão na parede oposta, tão óbvio e, no entanto, somente perceptível do lugar incomum onde eu então me encontrava. 
   Ao me aproximar, novas surpresas. O desvão era bem mais amplo do que parecia a princípio, permitindo a passagem de duas pessoas, lado a lado. Parecia-me impossível que tivesse estado ali todo o tempo sem que eu jamais o tivesse notado. Contudo, bastava-me dar um passo atrás para que desaparecesse de vista, subitamente substituído por uma sólida parede de alvenaria. O truque era simples, quase óbvio. Uma ilusão de ótica ordinária. A passagem permanecia aberta todo o tempo. Entretanto, para olhos leigos, resultava intransponível como uma muralha. 
   O corredor era estreito, escuro, mas se alargava pouco a pouco até finalmente desembocar em uma ampla torre cilíndrica, com seus vinte e poucos metros de altura, ocupada por estantes atopetadas de livros que subiam em espirais pelas paredes até quase tocarem a claraboia. 
   Não era biblioteca que facilitasse o acesso às obras ali preservadas. Não havia escadas e nem passarelas entre os muitos níveis da torre. Tampouco havia mesas de leitura, escritórios ou escaninhos, o que me levou a pensar que aquela era uma biblioteca feita para leitores alados, capazes de alcançar os livros das prateleiras mais altas e pairar no ar durante a leitura. Ao meu alcance, porém, estavam os livros das prateleiras mais baixas. E apenas esses seriam suficientes para me ocupar pelo resto da vida. Eram livros esplendidamente encadernados e impressos sobre papel tão imaculadamente branco que dava pena tocá-lo com os olhos. Já o acabamento gráfico era primoroso, capaz de alcançar o improvável meio-termo entre a arte dos copistas-iluministas e a precisão da editoração eletrônica. 
   Havia, porém, um terrível inconveniente, um empecilho evidentemente intransponível. E é de se imaginar o meu desencanto ao perceber que todos aqueles livros haviam sido escritos em um idioma que me era completamente estranho, com caracteres misteriosos, tão belos quanto ininteligíveis. 
   Estava eu ali não fazia um quarto de hora, revirando as prateleiras na esperança de encontrar alguma obra que permitisse leitura, quando me dei conta do rumor. Quase imperceptível a princípio, logo ganhou força, revelando-se finalmente como um murmúrio de vozes, muitas vozes, como se houvesse uma multidão ressabiada escondida por trás das estantes — possivelmente os próprios donos da biblioteca, mobilizando-se para expulsar o intruso. Foi uma ilusão passageira. O medo faz coisas tremendas com a imaginação das pessoas. E bastou-me pensar um pouco para concluir que vozes tão agradáveis, tão suaves e amistosas, jamais poderiam querer mal a alguém, intruso que fosse. As vozes continuaram, mais altas, mais nítidas, cada vez mais doces e virtuosas — já sem o cuidado de serem discretas — de tal forma que logo percebi que o que de fato ocorria era que os livros haviam se dado conta de minha presença; e se preparavam para cantar para mim. 

Desde então tenho voltado frequentemente à biblioteca. E toda vez a rotina se repete. Tão logo me posiciono com um livro no centro da torre, os outros se põem a cantar e, enquanto cantam, me é dada a incrível faculdade de compreender o idioma em que são escritos. Mais que isso, sou capaz de presenciar as histórias que leio como se estivessem ocorrendo em tempo presente, bem diante de meus olhos. Cheiros, gostos, imagens, tudo me é acessível nesses momentos mágicos em que desfruto de textos que, em realidade, são memórias em estado bruto, codificadas, armazenadas e fielmente reproduzidas sabe-se lá por que incrível técnica ou sortilégio. 
   Certamente o organizador da coleção era alguém obcecado não apenas por obras espetaculares mas também inéditas. Em toda a vida jamais ouvira falar dos livros que ali encontrei, embora alguns me parecessem verdadeiras obras primas do gênio literário. Por maior que fosse a tentação, jamais ousei trazer comigo um dos volumes da torre. Não ficaria surpreso se a passagem se fechasse para sempre tão logo eu dela emergisse portando, em vez do livro, um maço de aparas de papel vagabundo. Tenho certeza de que a mágica não funcionaria fora da biblioteca, que já provou ser uma máquina perfeitamente calibrada e da qual não seria aconselhável retirar qualquer peça, miúda que fosse. Vez por outra penso em reproduzir de memória algumas das coisas lidas naqueles livros. Contudo, assim como os sonhos, as histórias que leio na biblioteca perdem muito do encanto quando transpostas para esta nossa realidade, e desisto da empreitada antes mesmo de ligar o computador. 
   Recentemente, porém, caíram-me em mãos três obras curiosíssimas, sob todos os aspectos merecedoras de maior determinação de minha parte. Não são livros capitais do acervo, estão longe de serem os mais volumosos e chegam a destoar de seus companheiros de estante dada a despretensão da linguagem. São, entretanto, aventuras capazes de deliciar o leitor moderno com seus pequenos escândalos, controvérsias e heresias, de modo que não vi alternativa senão arregaçar as mangas e resgatá-las do inexplicável anonimato que as cercava havia tanto tempo.

(Continua...)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

São Tomé na América


DURANTE UMA VIAGEM A Jerusalém, um jovem comerciante grego conhece os apóstolos de Cristo e com eles participa do misterioso episódio da véspera de Pentecostes, quando o lugar onde estavam foi invadido por “línguas repartidas de fogo” e todos foram tocados pela luz do Espírito Santo “e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem.”
   Este é o ponto de partida de São Tomé na América, uma comédia-épica que narra a obviamente malfadada, repleta de mal-entendidos, mas nem por isso menos hilária missão de um apóstolo improvisado pelas Américas do primeiro século de nossa era.
   Ambientado em um continente já há muito perdido, em um tempo em que os homens ainda eram deuses e havia gigantes sobre a face da terra o romance dá conta das viagens de Polícrates de Naxos,que durante catorze anos peregrinou pelo continente americano, pregando a palavra do Senhor para jês, guaranis, tiahuanacos, paracas, mochicas, quichés, pós-olmecas, zapotecas e teotihuacanos, culminando em uma eletrizante, embora mortal, partida de pocolpoc — espécie de futebol jogado pelos antigos povos da América Central — na cidade de Teotihuacán, onde estarão em jogo não apenas a vida do protagonista como também o florescimento ou o extermínio de uma grande civilização.
   É ler para crer. 

Graça e ironia

Por Ivan junqueira

A QUEM PODERIA OCORRER, NOS extertores do segundo milênio, contar as memórias de um pobre diabo de garrafa chamado Giacomo Lorenzo Bembo, “fluente em cento e doze línguas conhecidas” e outras tantas que os paleógrafos “não conseguiram classificar”, que foi exconjurado nas ruínas do Coliseu romano, na madrugada de 31 de outubro de 1526, pelo escultor e ourives florentino Benvenuto Cellini? Pois a insólita e desconcertante idéia aflorou na imaginação do escritor brasileiro Alexandre Raposo, ganhador de uma das três bolsas que a Biblioteca Nacional instituiu em fins de 1997 para romances em andamento.
   Pois esse fabuloso diabo de garrafa, com sua fina ironia e sua descomunal cultura em vários ramos do saber, passou de mão em mão — além das de Cellini,  pelas do embarcadiço português Nuno da Silva, do frade dominicano Soares Gaillán, do compositor e virtuose italiano Niccolò Paganini e do estudante de arqueologia brasileiro José Afonso Gonçalves — até tornar-se propriedade da família a que pertence quem lhe narra estas esticadas memórias de quase quinhentos anos.
   O que de pronto encanta e surpreende em Memórias de um diabo de garrafa é, acima de tudo, o absoluto domínio que revela o autor não só de nossa língua e de suas mais caras tradições, mas também da agílima linguagem ficcional de que se vale. Essas memórias seculares nos são contadas com graça e ironia inexcedíveis, fazendo assim de sua leitura um deleite a que decerto não está habituado o leitor brasileiro.
   As mais bizarras peripécias da espantosa criatura — não fora ele um vetusto diabo de garrafa — nos aliciam com uma  estranha variedade mercê do estilo culto e elegante de que se serve Raposo, o que galvaniza o leitor e fá-lo não renunciar por um só instante àquilo que eu diria aqui constituir mais do que aquele barthesiano “plaisir du texte”, a degustação de um vinho velho, raro e inebriante. Não cumpre antecipar nestas orelhas, as quais o leitor deve fazer ouvido moucos, quaisquer daquelas peripécias, já que estão todas como que visceralmente entranhadas na arte narrativa de quem as relata. E esse mesmo leitor, se sábio for, que vá a texto já e já, e não o largue da primeira até a última linha. Se assim o fizer, entenderá do que lhe falo. E por que aqui o exalto.

Sobre Éden 4

Por José Mindlin

COMENTAR UMA OBRA DE Alexandre Raposo é um encargo muito atraente pois ele é um autor jovem que vem se destacando no panorama literário brasileiro. Seus dois primeiros livros — Inca e Memórias de um diabo de garrafa — revelam um apreciável talento em lidar com o romance histórico, ou com o que se poderia classificar de história romanceada, tal a semelhança com os fatos históricos que consegue dar a seus textos, frutos de muita pesquisa e de óbvia erudição. Alexandre Raposo escreve de forma extremamente agradável, entremeando a narrativa com muito humor, o que torna ainda mais prazeirosa a sua leitura.
   Antes de se tornar escritor foi, por vários anos, jornalista — uma excelente escola — mas em dado momento, como acontece com muitos de nós, sentiu a necessidade de optar entre o jornalismo e outra profissão — no caso, a literatura. Optou por esta, preparou-se durante vários anos, e os livros que publicou mostram que a escolha foi realmente acertada.
   Enquanto trabalha em novo romance, parece que resolveu testar sua versatilidade, enveredando pelo terreno do conto. Não foi, aliás, uma decisão surpreendente, pois a safra de contos publicados nos últimos anos é bem considerável e demonstra a popularidade que o gênero alcançou. A preferência do público poderia ser atribuída a uma aparente maior facilidade de leitura, e até mesmo de elaboração do conto, no ritmo apressado da vida de todos nós. Não que ler ou mesmo escrever um conto seja necessariamente mais fácil do que ler ou escrever um romance — muitas vezes, é o contrário que acontece. Nem significa que a preferência por um gênero exclua o outro, tanto que muitos grandes escreitores se dedicaram com sucesso a ambos. Lembremos, Machado de Assis, Somerset Maugham ou Guimarães Rosa.
   Não creio que exista, aliás, um critério para se determinar o que é melhor, se o conto ou o romance. De meu lado, gosto das duas coisas e acho que a aventura tentada por Alexandre Raposo é perfeitamente válida. Provavelmente quis ver como seria escrever textos que não exigissem um trabalho exaustivo de pesquisa, simplesmente dando largas à imaginação. Tinha todo direito de fazer essa experiência e este livro mostra que se saiu bem. Os contos são interessantes, alguns deles excelentes. Basta ler, por exemplo, “O Peixe-Rei”, “Succubus”, “A onda”, “A cerveja em três tempos” ou “Entrevista com um alienígena”.
   O curioso é que, nos contos, além do escritor, voltou a aparecer o jornalista, pois o tom da narrativa freqüentemente assume características de uma boa reportagem. Isso não é defeito, mas levado ao extremo poderia signficar um afastamento da literatura, tal como de modo geral a entendemos. Felizmente, não é o caso. Acho que, como disse, a experiência foi válida e o livro merece ser lido.
  Alexandre Raposo, que já era um bom romancista, revelou-se um bom contista. De sua pena, podemos esperar grandes coisas.

História e fantasia nos Andes

Luiz Antônio Aguiar
para o JORNAL DO BRASIL


EM SUA NOTA INTRODUTÓRIA, Ale­xandre Raposo, situa-se:. “...o ro­mance literário é um tipo de mentira sofisticada, perpetrada com o con­sentimento de quem o lê”. E a epí­grafe que apadrinha o Livro 1 do ro­mance amplia essa noção: “É preci­so saber ignorar”. A começar pela epígrafe; sim, saber ignorar é preci­so; é preciso possuir certa sabedoria para ignorar, para ser capaz de igno­rar bem, de modo fértil; para tomar a ignorância, ou aquilo que não se sabe, em conhecimento-outro da realidade: da história, no caso, um conhecimento que ultrapasse fatos e fontes: a ficção. Os simulacros, as verossimilhanças, a arte do fazer pa­recer possível, prestidigitação, con­hecimento. Inca, de Alexandre Ra­poso, exerce essa arte com exu­berância e emoção.
   Parte substancial do romance consiste no relato de Lloque, o amauta-sábio, conselheiro, fonte confiável para que se desfaçam enigmas antropológicos e arqueoló­gicos sobre os incas, já que Lloque foi figura de destaque da corte de Cuzco, do apogeu do Império até a execução de Atahualpa, que deflagra um declínio vertiginoso da civiliza­ção andina.
   No entanto, a existência predesti­nada de Lloque inicia-se na ilha da Páscoa — teria nascido, exatamente (embora não se registrassem datas à moda cristã, como de resto, talvez, de nenhuma outra maneira, entre os tamines) a 12 de outubro de 1464. Seu pai era um guerreiro tamine, descendente dos habitantes mais an­tigos da ilha, talvez os mesmos que erigiram as famosas estátuas. Sua pequena família constituía-se nos únicos sobreviventes da raça. Nessa época, Páscoa já haveria sofrido um surto migratório, vindo da Polinésia. Canibais, pouco se importan­do com a imponência das estátuas espalhadas pela ilha, os polinésios viam os tamines como caça, nada mais. Uru, pai de Lloque, guardião de fantástica coleção de tábuas onde se achavam registradas as lendas e a cosmologia tamine, sabe, pela escri­tura das tábuas, que há um continen­te distante a ser alcançado, atraves­sando o mar — empreitada insana, mas que alternativa tinham?
   As tábuas contavam que os tami­nes seriam descendentes do Povo do Sol, ao qual se reuniriam, algum dia, quando retomassem ao continente. Em contrapartida, entre os incas, corria uma profecia que anunciava, também para algum dia futuro, a chegada de descendentes do povo ancestral — esse evento marcaria o início da ascensão da civilização in­ca, o período das conquistas, das invasões, da prosperidade, da riqueza e da glória, da formação do Império.
   Lloque chega a Cuzco ainda be­bê de colo. E somos conduzidos através da narrativa pelo seu relato nostálgico, dolorido, aos 77 anos, já em plena dominação espanhola. Cientes de que o Império viverá também sua decadência, sua penúria, e que seremos inevitavelmente levados a acompanhá-la, nós, que fôramos seduzidos a admirar, a tor­cer pelos incas, a apreciar seu refi­namento exótico, e mesmo a tolerar as atrocidades que (também) come­tiam, somos contaminados pela mesma compaixão com que Llo­que, testemunhando o presente, desvela o passado. A nós, latinos modernos, foi deixada uma história do Império baseada nos brutamon­tes assaltantes de Pizarro, no que se depreende de ruínas etc... Lloque, que viu as fundações daquelas construções serem escavadas, como símbolo de grandeza emergente, não esconde, nem procura fazê-lo, seu lamento, a cada linha, pelo des­fecho que já conhece, que não po­derá evitar, mesmo em suas memó­rias, mesmo em seu relato. O efeito desse olhar desolado do narrador, mesmo nos momentos mais pujan­tes, é o que nos comove.
   Raposo usa a ironia em boa me­dida, e mesmo a gozação, toda vez que seu texto constrói uma verossi­milhança tão poderosa que corre o risco de ser desfigurada como ver­dade. E, com bom toque, vale-se de um tratamento de linguagem efi­ciente — sem firulas —, mais do que apropriado para o contexto em questão. O autor, estreante, reali­zou extensa pesquisa, visitou os lo­cais que lhe servem de ambienta­ção, exauriu amigos, compelidos a conviver com algum obcecado, ha­via anos, pelos incas. Como resul­tado, talvez cumpra a ameaça ou promessa — de sua nota introdutó­ria, despertando a imaginação dos leitores para a possibilidade de a realidade “ter sido ainda mais ina­creditável”. No entanto, Inca, na prática, renega tal princípio, mes­mo que, de início, tenha lhe servido de álibi. O que fica da leitura é a sensação de que realidade nenhuma pode demonstrar-se — ou compro­var-se — crível, sem o poder, a ma­gia e a comoção que lhe é conferi­da por aquele que a narra.
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Luiz Antônio Aguiar é escritor

Simpatia pelo demônio

Roberto Muggiati
para a MANCHETE

ALEXANDRE RAPOSO ESTREOU na ficção com um romance histórico sobre a saga dos Incas. Agora, com Memórias de um diabo de garrafa, ele se solta mais e faz uma fusão de ficção e história, elegendo como narrador um diabo que atravessa 500 anos sem jamais ter saido de uma garrafa de pouco mais de meio litro de capacidade. O lançamento do livro coincidiu com a recente nova investida da Igreja Católica contra o demônio, que culminou com a divul­gação, pelo Vaticano, do seu novo manual de exorcismo, De exorcismis et supplication­ibusquibusdam. O livro de Ra­poso não trata do Maligno, primeiro e único, mas de um aparentemente inofensivo diabo de garrafa (entidade muito próxima ao gênio da lâmpada) que vai mudando de mãos ao longo dos séculos. (Raposo não é roqueiro, mas sua história lembra um pouco a letra de Sympathy for the Devil, dos Stones, que fala de um demônio que participou da agonia dé Cristo, da morte dos Romanov na Re­volução Russa, do assassinato dos Kennedy.)
   A saga do bichinho da garrafa é um pretexto para traçar perfis de curiosas figuras históri­cas, desde o artista florentino Benvenuto Celli­ni, que conjurou o diabo numa madrugada de 1526 nas ruínas do Coliseu romano, até — pas­sando pelo navegante português Nuno da Silva, pelo frade domini­cano Suarez Gavillán e pelo virtu­ose do violino Paganini — o arqueólogo brasileiro José Afonso Gonçalves e seus herdeiros, aos quais foi legada a garrafa com o seu tripulante intacto.
   Ao final, uma reflexão, ho­nesta, do diabo de Raposo: “Os quase cinco séculos que vivi não me habilitaram a chegar a qual­quer conclusão a respeito da condição humana, do sentido da vida, de onde viemos, para onde vamos etc. etc. etc.
   O livro termina com uma Re­ceita para se conjurar um diabo dentro de uma garrafa e mantê-lo ali per saecula saeculorum (Versão tropical atualizada). Quem quer tentar? Segundo Ra­poso, “se tudo correu como o espetado, há chances de você ser o feliz proprietário de um diabo de garrafa como eu”.
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Roberto Muggiati é escritor e jornalista.

Um diabo sábio, com muitas histórias para contar

Elias Fajardo
para O GLOBO 

UMA BOA IDÉIA NÃO É im­prescindível para escre­ver um bom romance. Mas ajuda bastante. O li­vro de Alexandre Raposo parte de uma idéia central estimulante: um diabo atravessa os séculos preso num recipiente de cristal e convive com figuras representati­vas de vários períodos históri­cos: o escultor Benvenuto Cellini, que o conjurou (termo técnico que significa dar nascimento a um ser diabólico) na Renascença; um navegador português que, em pleno século XVI — a era das grandes viagens marítimas ibéri­cas — servia-se dos conselhos do pequeno capeta para iludir pira­tas e acumular tesouros; o virtuo­se e compositor Paganini que, no século XIX, usava o poder de um dos quatro cérebros do diabo pa­ra planejar excursões e escolher seu repertório.
   Giacomo, o prisioneiro da gar­rafa, não é um diabo no sentido católico do termo, mas no senti­do clássico, socrático, ou seja, um espírito não necessariamente mau, capaz de inspirar os ho­mens nos momentos de aperto. Vive no vácuo, tem poderes tele­páticos e habilidades como ficar invisível ou viajar para fora do corpo. E, mais do que isto, é um erudito, interessado na ciência e no conhecimento. Num dos capí­tulos mais interessantes, Giaco­mo passa séculos trancado na Bi­blioteca do Vaticano tendo como companhia um diabo de garrafa assírio com 2,5 mil anos de idade. Os diálogos entre os dois são de­lícias de humor e ironia.
   Em tempos em que os homens se matam, se roubam, se atrai­çoam e se apedrejam por motivos às vezes triviais, a ética dos dia­bos de garrafa está mais próxima do bem do que do mal.
    Mas Giacomo não era exata­mente uma flor que se cheire. Sem culpas, era capaz de espertezas e baixarias e rezava pela cartilha: para os amigos tudo, aos inimigos nada. Seu maior inimigo, no entan­to, era o obscurantismo, que le­vou, por exemplo, Paganini a se recusar a usar um remédio reco­mendado por Giacomo. Afinal, um cristão não poderia ser curado pe­lo seu demo de estimação! O re­médio era o mesmo que Giacomo usou para curar uma sífilis em Cel­lini: o mofo que nascia sobre os queijos, princípio que mais tarde daria origem à penicilina.
   Demonologias à parte, Giaco­mo é um recurso que o autor usou para narrar sua história. Sem o endiabrado habitante da garrafa de cristal, as biografias das ilustres figuras citadas no li­vro talvez ficassem bem menos interessantes. E aí entra o segun­do elemento importante num ro­mance (sobretudo histórico): a pesquisa. Ela deve ser aprofunda­da o bastante para dar ao autor intimidade com o assunto e a época tratados, mas não imobilizante nem pesada, pois pode tor­nar árido o texto e diminuir o in­teresse em torno dele. O escritor e jornalista Alexandre Raposo pesquisou muito. Mas conservou a verve e o humor, o que é bom para seus personagens e também para o seu público.
   Em alguns momentos, peque­nos cochilos, perfeitamente evi­táveis. A certa altura, Giacomo louva um piloto brasileiro que ga­nhou seu primeiro título mundial no Japão. E cujo sobrenome era Da Silva. Ora, sem mencionar ex­plicitamente que foi Ayrton Sen­na, nem todo mundo vai adivi­nhar o nome do piloto.
   No final do romance, os leito­res vão encontrar uma receita de­talhadíssima com os ingredientes e o que é preciso fazer para con­jurar um demônio de garrafa.
   Quem se habilita?

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Elias Fajardo é jornalista e escritor.