quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Contador de histórias


Flávio Carneiro
No Pais do Presente, Rocco, 2005

DUAS PALAVRAS PODEM NOS ajudar na definição de Éden 4: inventividade e simplicidade. Nos seus livros anteriores, Inca e Memórias de um diabo de garrafa, Alexandre Raposo já apostava na linguagem simples, sem arabescos de qualquer espécie ou ousadas experimentações formais, e num enredo incomum com personagens marcantes.
   Aqui, o autor percorre pela primeira vez as veredas da narrativa curta. Nos 15 contos que compõem o livro, Alexandre Raposo vai buscar em certa literatura não-canônica — o fantástico e a ficção-científica, por exemplo — as matrizes que, acrescidas de humor, ironia e algumas doses de ceticismo, acabam gerando uma escrita envolvente, com enredos que guardam sempre alguma surpresa para o final.
   Escrita, aliás, que não nega suas origens ao proporcionar ao leitor o prazer de ler histórias passadas em mundos gerados pela fantasia do autor, que ora deriva para o sonho, ora para a projeção do presente no futuro, ora — nos melhores momentos do livro — para o intervalo habitado por uma coisa e outra.
   Ao fantástico e à ficção científica, juntam-se ainda contos narrados feito fábulas, como “O Peixe-Rei”, ou a partir de certas misturas como “De olhos bem abertos”, no qual o fantástico (ou a fantasia, ou a paranormalidade) se alia a certo realismo urbano.
   Outros contos fazem lembrar os velhos contadores de “causos”, cuja força reside na oralidade, na capacidade de, literalmente, enredar, ou seja, trazer para dentro do enredo, seus hipnoptizados ouvintes. É o que acontece em “Justiça”, narrado por um pescador, entre várias doses de cachaça, ao amigo farmacêutico que acaba de passar por uma situação trágica.
   Como bom pescador, este também sabe contar histórias, e a que ele narra irá prender de tal forma o crédulo farmacêutico que nem as grosserias do dono do bar, doido para fechar as portas, irão tirá-lo da cadeira. E assim como o farmacêutico não consegue deixar seu interlocutor antes do final da história, também o leitor dificilmente, ou muito a contragosto, abandonará o conto sem saber de seu desfecho.
Sob a singeleza dos relatos, há por todo livro — disfarçada num e noutro personagem, neste ou naquele enredo — a constatação de que o ser humano é naturalmente um predador, fadado a exterminar seus semelhantes e o próprio planeta. E que a única saída é retornar ao início, começando tudo de novo, dando menos importância à “árvore do bem e do mal” e mais valor ao companherismo, à solidariedade.
   O modo como Alexandre Raposo deixa entrever essa visão um tanto amarga do que move e, em última instância, do que a humanidade é feita — essa sutileza com que o autor vai montando suas histórias — às vezes desanda um pouco, cedendo a certas explicitações que bem poderiam ser suprimidas. Em “Rito de passagem” e em “A caixa de Pandora”, por exemplo, há frases sobrando. O mesmo acontece em “O Peixe-Rei”, embora aqui, o fato de se tratar de uma fábula até justifique algo como uma “moral da história”.
   De qualquer forma, nesses contos e numa ou noutra passagem de outros, o exímio contador de histórias que é Alexandre Raposo se deixa levar, quem sabe, por certo desejo de imprimir ao texto algo que não lhe cabe ou, pelo menos, não de forma explícita: a transmissão de ensinamentos, mensagens.
    Não é o que acontece na maioria dos contos, é bom que se diga. No comovente “Ano-bom”, por exemplo, um tema que poderia ter virado clichê em mãos  menos laboriosas acaba se transformando numa bela e divertida história de amor, passada em 2042 e tendo como protagonista uma velha solitária, esquecida no prédio que vai ser implodido. Velha senhora que recebe a visita do falecido marido, sob o disfarce de um busca-pé (muito) falante, a salvá-la da morte iminente fugindo pela janela, ou pelo céu, ou quem sabe pela memória.
   Em “Uma escada para o céu”, temos novamente a fábula, numa reescrição da passagem bíblica da construção da Torre de Babel. Aqui, e não apenas por isso, o autor parece render homenagem a Murilo Rubião que, como o autor de Éden 4, sempre primou pelo insólito associado à clareza de linguagem. Murilo Rubião era obstinado recriador do texto bíblico, a partir do qual escreveu o conto “O edifício”, com base no episódio que também dá origem ao conto de Alexandre Raposo.
   No último conto do livro, aliás, o autor novamente recorre à Bíblia, numa ficção que engloba passado, presente e futuro e convida o leitor a conhecer, finalmente, um estranho planeta chamado Éden 4. Até chegar lá, porém, é preciso percorrer muitos outros lugares, reais e imaginários, que se espalham por cada uma das histórias, e se compete ao resenhista dar algum conselho ao leitor, o único que lhe ocorre é que apenas se deixe levar pelas páginas nessa longa viagem.
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Flávio Carneiro é crítico literário e professor de literatura na UERJ.   

4 comentários:

  1. Sou professor de Literatura. Conheci o livro Eden 4 através dessa análise de Flávio Carneiro. Quando adquiri o livro fiquei absolutamente encantado pela qualidade da escrita e por ter uma obra de ficção científica de autor brasileiro com esse nível. Antes de qualquer coisa, excelente literatura.

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  2. Sou professor de Literatura. Conheci o livro Eden 4 através dessa análise de Flávio Carneiro. Quando adquiri o livro fiquei absolutamente encantado pela qualidade da escrita e por ter uma obra de ficção científica de autor brasileiro com esse nível. Antes de qualquer coisa, excelente literatura.

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