para O GLOBO |
UMA BOA IDÉIA NÃO É imprescindível para escrever um bom romance. Mas ajuda bastante. O livro de Alexandre Raposo parte de uma idéia central estimulante: um diabo atravessa os séculos preso num recipiente de cristal e convive com figuras representativas de vários períodos históricos: o escultor Benvenuto Cellini, que o conjurou (termo técnico que significa dar nascimento a um ser diabólico) na Renascença; um navegador português que, em pleno século XVI — a era das grandes viagens marítimas ibéricas — servia-se dos conselhos do pequeno capeta para iludir piratas e acumular tesouros; o virtuose e compositor Paganini que, no século XIX, usava o poder de um dos quatro cérebros do diabo para planejar excursões e escolher seu repertório.
Giacomo, o prisioneiro da garrafa, não é um diabo no sentido católico do termo, mas no sentido clássico, socrático, ou seja, um espírito não necessariamente mau, capaz de inspirar os homens nos momentos de aperto. Vive no vácuo, tem poderes telepáticos e habilidades como ficar invisível ou viajar para fora do corpo. E, mais do que isto, é um erudito, interessado na ciência e no conhecimento. Num dos capítulos mais interessantes, Giacomo passa séculos trancado na Biblioteca do Vaticano tendo como companhia um diabo de garrafa assírio com 2,5 mil anos de idade. Os diálogos entre os dois são delícias de humor e ironia.
Em tempos em que os homens se matam, se roubam, se atraiçoam e se apedrejam por motivos às vezes triviais, a ética dos diabos de garrafa está mais próxima do bem do que do mal.
Mas Giacomo não era exatamente uma flor que se cheire. Sem culpas, era capaz de espertezas e baixarias e rezava pela cartilha: para os amigos tudo, aos inimigos nada. Seu maior inimigo, no entanto, era o obscurantismo, que levou, por exemplo, Paganini a se recusar a usar um remédio recomendado por Giacomo. Afinal, um cristão não poderia ser curado pelo seu demo de estimação! O remédio era o mesmo que Giacomo usou para curar uma sífilis em Cellini: o mofo que nascia sobre os queijos, princípio que mais tarde daria origem à penicilina.
Demonologias à parte, Giacomo é um recurso que o autor usou para narrar sua história. Sem o endiabrado habitante da garrafa de cristal, as biografias das ilustres figuras citadas no livro talvez ficassem bem menos interessantes. E aí entra o segundo elemento importante num romance (sobretudo histórico): a pesquisa. Ela deve ser aprofundada o bastante para dar ao autor intimidade com o assunto e a época tratados, mas não imobilizante nem pesada, pois pode tornar árido o texto e diminuir o interesse em torno dele. O escritor e jornalista Alexandre Raposo pesquisou muito. Mas conservou a verve e o humor, o que é bom para seus personagens e também para o seu público.
Em alguns momentos, pequenos cochilos, perfeitamente evitáveis. A certa altura, Giacomo louva um piloto brasileiro que ganhou seu primeiro título mundial no Japão. E cujo sobrenome era Da Silva. Ora, sem mencionar explicitamente que foi Ayrton Senna, nem todo mundo vai adivinhar o nome do piloto.
No final do romance, os leitores vão encontrar uma receita detalhadíssima com os ingredientes e o que é preciso fazer para conjurar um demônio de garrafa.
Quem se habilita?
Quem se habilita?
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Elias Fajardo é jornalista e escritor.
Parabéns! Mexer com esse arquétipo é para quem tem coragem, ficou bom mesmo... Boa sorte em tudo que fizeres!!!
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