quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Um diabo sábio, com muitas histórias para contar

Elias Fajardo
para O GLOBO 

UMA BOA IDÉIA NÃO É im­prescindível para escre­ver um bom romance. Mas ajuda bastante. O li­vro de Alexandre Raposo parte de uma idéia central estimulante: um diabo atravessa os séculos preso num recipiente de cristal e convive com figuras representati­vas de vários períodos históri­cos: o escultor Benvenuto Cellini, que o conjurou (termo técnico que significa dar nascimento a um ser diabólico) na Renascença; um navegador português que, em pleno século XVI — a era das grandes viagens marítimas ibéri­cas — servia-se dos conselhos do pequeno capeta para iludir pira­tas e acumular tesouros; o virtuo­se e compositor Paganini que, no século XIX, usava o poder de um dos quatro cérebros do diabo pa­ra planejar excursões e escolher seu repertório.
   Giacomo, o prisioneiro da gar­rafa, não é um diabo no sentido católico do termo, mas no senti­do clássico, socrático, ou seja, um espírito não necessariamente mau, capaz de inspirar os ho­mens nos momentos de aperto. Vive no vácuo, tem poderes tele­páticos e habilidades como ficar invisível ou viajar para fora do corpo. E, mais do que isto, é um erudito, interessado na ciência e no conhecimento. Num dos capí­tulos mais interessantes, Giaco­mo passa séculos trancado na Bi­blioteca do Vaticano tendo como companhia um diabo de garrafa assírio com 2,5 mil anos de idade. Os diálogos entre os dois são de­lícias de humor e ironia.
   Em tempos em que os homens se matam, se roubam, se atrai­çoam e se apedrejam por motivos às vezes triviais, a ética dos dia­bos de garrafa está mais próxima do bem do que do mal.
    Mas Giacomo não era exata­mente uma flor que se cheire. Sem culpas, era capaz de espertezas e baixarias e rezava pela cartilha: para os amigos tudo, aos inimigos nada. Seu maior inimigo, no entan­to, era o obscurantismo, que le­vou, por exemplo, Paganini a se recusar a usar um remédio reco­mendado por Giacomo. Afinal, um cristão não poderia ser curado pe­lo seu demo de estimação! O re­médio era o mesmo que Giacomo usou para curar uma sífilis em Cel­lini: o mofo que nascia sobre os queijos, princípio que mais tarde daria origem à penicilina.
   Demonologias à parte, Giaco­mo é um recurso que o autor usou para narrar sua história. Sem o endiabrado habitante da garrafa de cristal, as biografias das ilustres figuras citadas no li­vro talvez ficassem bem menos interessantes. E aí entra o segun­do elemento importante num ro­mance (sobretudo histórico): a pesquisa. Ela deve ser aprofunda­da o bastante para dar ao autor intimidade com o assunto e a época tratados, mas não imobilizante nem pesada, pois pode tor­nar árido o texto e diminuir o in­teresse em torno dele. O escritor e jornalista Alexandre Raposo pesquisou muito. Mas conservou a verve e o humor, o que é bom para seus personagens e também para o seu público.
   Em alguns momentos, peque­nos cochilos, perfeitamente evi­táveis. A certa altura, Giacomo louva um piloto brasileiro que ga­nhou seu primeiro título mundial no Japão. E cujo sobrenome era Da Silva. Ora, sem mencionar ex­plicitamente que foi Ayrton Sen­na, nem todo mundo vai adivi­nhar o nome do piloto.
   No final do romance, os leito­res vão encontrar uma receita de­talhadíssima com os ingredientes e o que é preciso fazer para con­jurar um demônio de garrafa.
   Quem se habilita?

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Elias Fajardo é jornalista e escritor.

Um comentário:

  1. Parabéns! Mexer com esse arquétipo é para quem tem coragem, ficou bom mesmo... Boa sorte em tudo que fizeres!!!

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