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SAUDADO PELA CRÍTICA COMO um dos mais originais romances brasileiros dos últimos anos, Memórias de um diabo de garrafa, de Alexandre Raposo faz jus à classificação e começa a chamar a atenção também dos leitores. Para lvan Junqueira, mais do que a originalidade do enredo, o forte do livro é o absoluto domínio da língua exibido pelo autor, um jornalista carioca que já publicou um outro romance fora dos “padrões canônicos” da moderna ficção brasileira, intitulado Inca: a Saga da América Pré-Colombiana.
Excêntrico e exótico, o diabo criado por Alexandre Raposo tem quase 500 anos de existência e foi conjurado pelo artista florentino Benvenuto Cellini em uma madrugada de 1526 nas ruínas do Coliseu romano. Seu nome é Giacomo Lorenzo Bembo e ele mede 20 centímetros, do chifre à ponta da cauda. Pode ser confundido, à distância, com um réptil no formol, já que seu corpo é todo revestido por escamas, com os dedos das mãos e dos pés unidos por finas membranas. Dentro de sua garrafa, ele dá a impressão de ser um tiranossauro em miniatura. “Possui um único chifre, descreve o autor com maiores detalhes, em verdade uma crista cartilaginosa no topo da cabeça que ele usou uma única vez para romper a casca do ovo onde foi gerado. A cauda é semelhante à de uma iguana e culmina em um ferrão curvo, absolutamente inofensivo.”
Na verdade, o diabo Bembo é mais inofensivo do que aparenta. Poliglota, inteligentíssimo e beirando a sapiência, suas pequenas crueldades não vêem de sua natureza diabólica, mas foram aprendidas em sua convivência com os humanos. Bembo, o diabo, sabe 112 línguas conhecidas e outras tantas que nem mesmo os paleógrafos podem classificar. Seu português tem um leve acento lusitano e seu inglês e arcaico, beirando o saxônico.
As epígrafes de cada capítulo revelam a erudição do autor (ou seria do diabo-personagem?: versos originais de Dante para a parte do Inferno em sua “Divina Comédia”, dois versos (em grego) de Sófocles, o ditado predileto de Liszt (“Génie Oblige”, no lugar de “Noblesse Oblige”) e uma frase de Guimarães Rosa: “Sem terra nem haste, como as borboletas”.
Ouro em pó
Giacomo Lorenzo Bembo não apresenta nenhum tique dos capetas conhecidos pelos cristãos — não fede a enxofre, não gargalha diabolicamente e não fica ameaçando as pessoas com seu tridente vermelho. Ele simplesmente não traz tridente a tiracolo. Fugindo do estereótipo. Bembo é desprovido de “qualidades” tinhosas mas exibe, por outro lado, uma ironia tão sibilina que encheria de orgulho os seus pares nas profundezas ferventes de sua nação.
Quando pertencia ao escultor Cellini, o diabo Bembo leu a Bíblia pela primeira vez. Descobriu imprecisões e erros crassos na versão italiana, anterior à “Vulgata Editio”, do Concílio de Trento. Certa vez, quando um religioso do século XVII ouviu sua voz, percebeu de quem se tratava e gritou em latim: “Apage Satanas”. Bembo respondeu, também em latim: “Fronti nula di fides...” O religioso, inseguro, perguntou: “Cristiani?” ao que o diabo respondeu, mentindo diabolicamente: “A capite ad calcem”.
Depois de Benvenuto Cellini, Bembo pertenceu ao violinista virtuose Paganini, a um frade dominicano (que queria saber dele o que achava de Jesus Cristo, obtendo, como resposta “Buda faz mais o meu tipo”), a Francis Drake, ao embarcadiço português Nuno da Silva, com o qual veio em caravela para o Brasil no século XVI e ao estudante de arqueologia brasileiro José Afonso Gonçalves. O fato de estar no Brasil, engarrafado, pode explicar alguns non senses e atos diabólicos aos quais o povo está, há séculos, acostumado.
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