quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A originalidade como trunfo

Duílio Gomes
para O ESTADO DE MINAS

SAUDADO PELA CRÍTICA COMO um dos mais originais romances brasileiros dos últimos anos, Memórias de um diabo de garrafa, de Alexandre Raposo faz jus à classificação e começa a chamar a atenção também dos leitores. Para lvan Junqueira, mais do que a originalidade do enredo, o forte do livro é o absoluto domínio da língua exibido pelo autor, um jornalista carioca que já publicou um outro romance fora dos “pa­drões canônicos” da moderna ficção brasileira, in­titulado Inca: a Saga da América Pré-Colombia­na.
   Excêntrico e exótico, o diabo criado por Ale­xandre Raposo tem quase 500 anos de existência e foi conjurado pelo artista florentino Benvenuto Cellini em uma madrugada de 1526 nas ruínas do Coliseu romano. Seu nome é Giacomo Lorenzo Bembo e ele mede 20 centímetros, do chifre à ponta da cauda. Pode ser confundido, à distância, com um réptil no formol, já que seu corpo é todo revestido por escamas, com os dedos das mãos e dos pés unidos por finas membranas. Dentro de sua garrafa, ele dá a impressão de ser um tiranos­sauro em miniatura. Possui um único chifre, descreve o autor com maiores detalhes, em ver­dade uma crista cartilaginosa no topo da cabeça que ele usou uma única vez para romper a casca do ovo onde foi gerado. A cauda é semelhante à de uma iguana e culmina em um ferrão curvo, ab­solutamente inofensivo.”
   Na verdade, o diabo Bembo é mais inofensivo do que aparenta. Poliglota, inteligentíssimo e beirando a sapiência, suas pequenas crueldades não vêem de sua natureza diabólica, mas foram apren­didas em sua convivência com os humanos. Bem­bo, o diabo, sabe 112 línguas conhecidas e outras tantas que nem mesmo os paleógrafos podem clas­sificar. Seu português tem um leve acento lusitano e seu inglês e arcaico, beirando o saxônico.
   As epígrafes de cada capítulo revelam a erudição do autor (ou seria do diabo-personagem?: versos originais de Dante para a parte do Inferno em sua “Divina Comédia”, dois versos (em grego) de Sófocles, o ditado predileto de Liszt (“Génie Oblige”, no lugar de “Noblesse Oblige”) e uma fra­se de Guimarães Rosa: “Sem terra nem haste, co­mo as borboletas”.

Ouro em pó
Giacomo Lorenzo Bembo não apresenta nenhum tique dos capetas conhecidos pelos cristãos — não fede a enxofre, não gargalha diabolicamente e não fica ameaçando as pessoas com seu tri­dente vermelho. Ele simplesmente não traz tri­dente a tiracolo. Fugindo do estereótipo. Bembo é desprovido de “qualidades” tinhosas mas exibe, por outro lado, uma ironia tão sibilina que enche­ria de orgulho os seus pares nas profundezas fer­ventes de sua nação.
Quando pertencia ao escultor Cellini, o diabo Bembo leu a Bíblia pela primeira vez. Descobriu imprecisões e erros crassos na versão italiana, an­terior à “Vulgata Editio”, do Concílio de Trento. Certa vez, quando um religioso do século XVII ou­viu sua voz, percebeu de quem se tratava e gritou em latim: “Apage Satanas”. Bembo respondeu, também em latim: “Fronti nula di fides...” O religioso, inseguro, perguntou: “Cristiani?” ao que o diabo respondeu, mentindo diabolicamente: “A capite ad calcem”.
   Depois de Benvenuto Cellini, Bembo perten­ceu ao violinista virtuose Paganini, a um frade dominicano (que queria saber dele o que achava de Jesus Cristo, obtendo, como resposta “Buda faz mais o meu tipo”), a Francis Drake, ao em­barcadiço português Nuno da Silva, com o qual veio em caravela para o Brasil no século XVI e ao estudante de arqueologia brasileiro José Afonso Gonçalves. O fato de estar no Brasil, en­garrafado, pode explicar alguns non senses e atos diabólicos aos quais o povo está, há séculos, acostumado.

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