quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O diabo em Goiás

Gismair Martins Teixeira
para O POPULAR

O QUE HAVERIA DE COMUM ENTRE Benvenuto Cellini e Nicolo Paganini, além da incontestável genialidade com que marcaram época no campo das artes em áreas distintas? Na vida real, algumas poucas coisas. Na ficção, porém, há muito mais coincidência entre ambos que a fama do gênio.  
   Esta coincidência atende pelo nome de Giacomo Lorenzo Bembo, um simpático e nada assustador diabinho de garrafa que relata suas idas e vindas pelo mundo dos mortais em Memórias de um diabo de garrafa, uma bem-urdida ficção do jornalista e escritor Alexandre Raposo. 
    Esconjurado por Cellini em 1526, nas ruínas do Coliseu de Roma, Giacomo tem muito o que dizer. Afinal, não é qualquer um que conta mais de quatro séculos e meio de idade. Tempo este, aliás, bem aproveitado na leitura e meditação de obras-primas da humanidade, muitas das quais lidas no original e em primeira edição.

Tempo e espaço

Ao dar vez e voz a tão inusitada figura, Alexandre Raposo acertou golpe de mestre na estruturação ficcional de seu romance. De um só lance o autor soluciona — através da natureza mitológica inerente à personagem central — a questão espaço-temporal, além de privilegiar a verossimilhança na composição das demais personagens.
Se Machado de Assis põe um defunto a extrair ilações algo filosóficas do ramerrão cotidiano que caracterizou sua vida em Memórias Póstumas de Bras Cubas, em Memórias de um diabo de garrafa temos uma distensão no tempo e no espaço desse viés, com uma diferença significativa: Giacomo apresenta-se como uma espécie de alter ego do gênero humano, a testemunhar suas grandezas e misérias. Aliás, mais estas últimas que as primeiras.
Em ambas as memórias, a ironia sutil. Ou às vezes nem tanto. Como quando o diabinho de Raposo diz que ao longo desses séculos vem tentando aprender com os homens como ser um verdadeiro demônio, coisa que, segundo ele, "infelizmente ainda não aconteceu. Há tanto a aprender..."
Provando que é bom aluno, porém, Giacomo reserva para o final de Memórias... uma esdrúxula receita para prender um de seus pares, a quem interessar possa. Felizmente, o narrador de suas memórias e atual proprietário — dublê de Alladin — adverte ao leitor incauto que trata-se apenas de uma diabrura de seu pupilo.

Na pegada dos mestres

A exemplo de Machado de Assis, Guimarães Rosa legou à posteridade, em seu Grande Sertão: Veredas, material para fartas especulações. E o fez com a sutileza dos grandes mestres, o que abre um leque de possibilidades à exegese literária. Assim, como se especula quanto à fidelidade da personagem Capitu, da mesma forma paira a dúvida quanto à concretização do pacto de Riobaldo com o demônio. Afinal, o diabo apareceu ou não na encruzilhada do caminho?
Sem a pretensão de trazer à baila um novo enigma, Alexandre Raposo aproveita-se em Memórias... de determinadas especificidades temáticas das obras pinçadas ao universo machadiano e rosiano para retomá-las por uma perspectiva diferente. É assim que ele aproveita para deixar em sua obra a idéia de um exorcismo de natureza cultural. A primeira indicação disso se dá quando Khosr — outro diabo de garrafa multimilenar, espécie de mentor do diabinho de Raposo — desaparece misteriosamente na Biblioteca do Vaticano quando Giacomo abre um livro sobre ciência, publicado pelo então pouco conhecido Isaac Newton, quando o pobre diabo por lá esteve em suas andanças.
É como se Khosr recebesse golpe fatal, a partir do momento em que o homem descobre a lei da gravidade. É a ciência sobrepondo-se à superstição. Ou ao mito. A segunda e definitiva indicação se dá quando o diabinho encerra suas memórias e desaparece também de forma misteriosa, deixando o seu proprietário e filhos inconsoláveis.
De passagem, ainda, Raposo oferece em seu romance curiosas abordagens de algumas matrizes culturais presentes na formação brasileira, materializadas em algumas personagens. O que não deixa de ser uma breve reflexão nestes 500 anos de Brasil — Giacomo tem quase isso de idade.
Portanto, a tarefa — a princípio perigosa — de usar uma dupla referência intertextual de Machado e Guimarães é levada a cabo por Alexandre Raposo com inegável talento literário, a se expressar no estilo e na densidade do conteúdo de Memórias....
_________
Gismair Martins é mestre em Letras pela UFG.

Nenhum comentário:

Postar um comentário