Luiz Antonio Aguiar
para o JORNAL DO BRASIL
EM SEU ENSAIO Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou o mordomo não é o único culpado), José Paulo Paes defende que nenhum sistema literário estará consolidado sem que, ao lado do que chama de literatura de proposta, ou literatura erudita, exista uma poderosa literatura de entretenimento. O próprio Paes nos sugere pistas do que seria esse segmento literário, citando Umberto Eco, ao caracterizar os escritores dessa estirpe como “honestos e competentes artesãos que (...) não pretendem mais do que suprir as necessidades do consumidor médio (...) que no fim de um dia de trabalho pede a um livro ou a uma película o estímulo de alguns efeitos fundamentais (o arrepio, a risada, o patético) para restabelecer o equilíbrio da sua vida física ou intelectual”.
Mas são essas, justamente, as qualidades procuradas pelo leitor leigo no livro que toma para ler antes de dormir, ou durante uma viagem de avião, ou num fim de semana em que possa realmente tirar algumas horas de folga. Ou seja, um livro para ser lido naquelas horas mortas de tédio.
O leitor leigo busca seu correspondente, um escritor capaz de manipular efeitos de leitura, e também um escritor-cúmplice que impregne o texto de referências familiares — procura um interlocutor, alguém que compartilhe de boa vontade do mesmo ambiente cultural do leitor, não acima nem de fora, a lhe instruir sobre juízo estético ou a tentar extraí-lo do seu habitat.
Fantástico — Nesse rol, se encaixa Alexandre Raposo com seu Éden 4, uma coletânea de 15 contos que exploram o fantástico, de densidades diferentes, mas alguns originais e absolutamente cativantes, e todos com um final surpreendente, um gran finale, ao estilo dos contistas mais vigorosos da escola tradicional do gênero. E ainda, segundo o autor, sua “resposta a uma infância repleta de literatura gótica, quadrinhos de terror, filmes de ficção científica e séries de tevê como Além da imaginação, Quinta dimensão, Os invasores etc.”.
A habilidade de Raposo para a construção de boas histórias e bons personagens — a marca do ficcionista — ficou demonstrada em seus livros anteriores. Em 97, o escritor estreou com Inca, um verdadeiro espetáculo de construção ficcional sobre referências históricas. O protagonista é um personagem que, vindo da Ilha da Páscoa ainda bebê, chega a escriba e conselheiro do império andino, testemunhando seu apogeu e sua derrocada. Depois, tivemos Memórias de um diabo de garrafa, uma novela em que um pequeno diabo, gerado dentro de uma garrafa, na qual vive há séculos — estando agora em seus estertores —, narra sua trajetória divertidíssima.
A leitura de Eden 4 mostra que o livro foi feito para quem o fantástico não se contrapõe como antimatéria à realidade, como reflexão desconstrucionista; é entretenimento; e há regras que determinam a competência, ou não, da investida neste segmento cultural-literário.
Código — Por exemplo, existe todo um código de troca de senhas e de acordos tácitos com o leitor, para que a fantasia não descambe para o desvario, o surreal — é preciso haver uma verossimilhança, uma coerência interna nos limites do jogo, dispostos desde o início. Nada de tudo pode acontecer. Outra regra, aliás, correlacionada à primeira: o autor deve situar-se em relação às referências comuns da tribo, o que ela aceita, reconhece, até onde ela vai e concede, até onde flexibiliza as fronteiras do espaço final e do desconhecido que outros já demarcaram. Pode distendê-las, alterá-las, renová-las, mas não desconhecê-las.
Éden 4 contempla com perícia o exigente leitor-afeito/aberto-ao-fantástico e lhe oferece um cardápio que vai da fábula ao pastiche do mito da criação do universo, um must recorrente das histórias fantásticas. “O Peixe-Rei” é uma fábula; um peixe, senhor dos mares, de existência imemorial, com capacidade de oferecer qualquer recompensa, ao menino que o encontra aprisionado numa poça que a ressaca formara entre as pedras e a areia. As expectativas e evocações — de outras histórias, desde as Mil e uma noites — levantadas aqui serão corroídas pelo cinismo (uma idiossincrasia do escritor desde o seu primeiro romance). E também puro cinismo “Corrente”, em que se apresentam os Missivistas da Boa Ventura, cuja corrente de cartas determinaria sucessos e catástrofes.
Em “De olhos bem abertos” temos um garoto seqüestrado, confinado num buraco, que encontra um interlocutor, o mais improvável de todos, mas que presencia o suplício do refém e torna-se sua única esperança de salvação. Finalmente, entre os destaques, temos o conto “Éden 4”, algo que não podia faltar num escritor que confessa sua tara por aléns da imaginação, e congêneres, e que todo leitor aficionado deseja reencontrar, vez por outra, na literatura fantástica — o pastiche, hollywoodiano, segundo o autor, que reconta/revela a origem de um fenômeno ou lenda jamais desvendados. Alguns leitores ainda vão preferir o romantismo de “Rito de passagem”, ou o carnavalesco “Uma cerveja em três tempos”. Ou outros. Aqui não há cânone ou arsenal teórico a seguir, a qualificar, e sim, como em todo bom livro de entretenimento, uma ligação muito pessoal que se estabelece entre a história (e seus elementos) e o leitor. E difícil instaurar essa interlocução, ou, dito de maneira mais simples, é difícil contar bem uma história, sem firulas, sem exibir que ela esteja sendo contada. Éden 4 nos transporta a alguns momentos de leitura como esses, em que a consciência do entorno, do quarto, do alarido familiar, desaparece. E, para quem gosta de ler, de fato, isso é o que determina tempo ganho, bem empregado: um bom livro.
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Luiz Antonio Aguiar é escritor
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