quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O fantástico como puro divertimento

Luiz Antonio Aguiar
para o JORNAL DO BRASIL

EM SEU ENSAIO Por uma lite­ratura brasileira de entreteni­mento (ou o mordomo não é o único culpado), José Paulo Paes defende que nenhum sistema li­terário estará consolidado sem que, ao lado do que chama de literatura de proposta, ou litera­tura erudita, exista uma podero­sa literatura de entretenimento. O próprio Paes nos sugere pis­tas do que seria esse segmento literário, citando Umberto Eco, ao caracterizar os escritores dessa estirpe como “honestos e competentes artesãos que (...) não pretendem mais do que su­prir as necessidades do consu­midor médio (...) que no fim de um dia de trabalho pede a um livro ou a uma película o estí­mulo de alguns efeitos funda­mentais (o arrepio, a risada, o patético) para restabelecer o equilíbrio da sua vida física ou intelectual”.
   Mas são essas, justamente, as qualidades procuradas pelo leitor leigo no livro que toma para ler antes de dormir, ou du­rante uma viagem de avião, ou num fim de semana em que possa realmente tirar algumas horas de folga. Ou seja, um li­vro para ser lido naquelas horas mortas de tédio.
   O leitor leigo busca seu cor­respondente, um escritor capaz de manipular efeitos de leitura, e também um escritor-cúmplice que impregne o texto de refe­rências familiares — procura um interlocutor, alguém que com­partilhe de boa vontade do mes­mo ambiente cultural do leitor, não acima nem de fora, a lhe instruir sobre juízo estético ou a tentar extraí-lo do seu habitat.

Fantástico — Nesse rol, se encaixa Alexandre Raposo com seu Éden 4, uma coletânea de 15 contos que exploram o fan­tástico, de densidades diferen­tes, mas alguns originais e ab­solutamente cativantes, e todos com um final surpreendente, um gran finale, ao estilo dos contistas mais vigorosos da es­cola tradicional do gênero. E ainda, segundo o autor, sua “resposta a uma infância reple­ta de literatura gótica, quadri­nhos de terror, filmes de ficção científica e séries de tevê como Além da imaginação, Quinta dimensão, Os invasores etc.”.
   A habilidade de Raposo para a construção de boas histórias e bons personagens — a marca do ficcionista — ficou demonstrada em seus livros anteriores. Em 97, o escritor estreou com Inca, um verdadeiro espetáculo de construção ficcional sobre refe­rências históricas. O protago­nista é um personagem que, vindo da Ilha da Páscoa ainda bebê, chega a escriba e conse­lheiro do império andino, teste­munhando seu apogeu e sua derrocada. Depois, tivemos Memórias de um diabo de gar­rafa, uma novela em que um pequeno diabo, gerado dentro de uma garrafa, na qual vive há séculos — estando agora em seus estertores —, narra sua tra­jetória divertidíssima.
   A leitura de Eden 4 mostra que o livro foi feito para quem o fantástico não se contrapõe como antimatéria à realidade, como reflexão desconstrucio­nista; é entretenimento; e há re­gras que determinam a compe­tência, ou não, da investida nes­te segmento cultural-literário.

Código — Por exemplo, existe todo um código de troca de senhas e de acordos tácitos com o leitor, para que a fantasia não descambe para o desvario, o surreal — é preciso haver uma verossimilhança, uma coerência interna nos limites do jogo, dis­postos desde o início. Nada de tudo pode acontecer. Outra re­gra, aliás, correlacionada à pri­meira: o autor deve situar-se em relação às referências comuns da tribo, o que ela aceita, reco­nhece, até onde ela vai e conce­de, até onde flexibiliza as fron­teiras do espaço final e do des­conhecido que outros já demar­caram. Pode distendê-las, alte­rá-las, renová-las, mas não des­conhecê-las.
   Éden 4 contempla com perí­cia o exigente leitor-afeito/a­berto-ao-fantástico e lhe ofere­ce um cardápio que vai da fábu­la ao pastiche do mito da cria­ção do universo, um must recor­rente das histórias fantásticas. “O Peixe-Rei” é uma fábula; um peixe, senhor dos mares, de existência imemorial, com ca­pacidade de oferecer qualquer recompensa, ao menino que o encontra aprisionado numa po­ça que a ressaca formara entre as pedras e a areia. As expecta­tivas e evocações — de outras histórias, desde as Mil e uma noites — levantadas aqui serão corroídas pelo cinismo (uma idiossincrasia do escritor desde o seu primeiro romance). E também puro cinismo “Corren­te”, em que se apresentam os Missivistas da Boa Ventura, cu­ja corrente de cartas determina­ria sucessos e catástrofes.
Em “De olhos bem abertos” temos um garoto seqüestrado, confinado num buraco, que en­contra um interlocutor, o mais improvável de todos, mas que presencia o suplício do refém e torna-se sua única esperança de salvação. Finalmente, en­tre os destaques, temos o conto “Éden 4”, algo que não podia faltar num escritor que confessa sua tara por aléns da imagina­ção, e congêneres, e que todo leitor aficionado deseja reen­contrar, vez por outra, na litera­tura fantástica — o pastiche, hol­lywoodiano, segundo o autor, que reconta/revela a origem de um fenômeno ou lenda jamais desvendados. Alguns leitores ainda vão preferir o romantismo de “Rito de passagem”, ou o carnavales­co “Uma cerveja em três tem­pos”. Ou outros. Aqui não há cânone ou arsenal teórico a se­guir, a qualificar, e sim, como em todo bom livro de entreteni­mento, uma ligação muito pes­soal que se estabelece entre a história (e seus elementos) e o leitor. E difícil instaurar essa interlocução, ou, dito de manei­ra mais simples, é difícil contar bem uma história, sem firulas, sem exibir que ela esteja sendo contada. Éden 4 nos transporta a alguns momentos de leitura como esses, em que a consciên­cia do entorno, do quarto, do alarido familiar, desaparece. E, para quem gosta de ler, de fato, isso é o que determina tempo ganho, bem empregado: um bom livro.
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Luiz Antonio Aguiar é escritor

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