quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Um pé no mundo real, outro no mundo das luas

Nelson Vasconcelos
para O GLOBO

À PRIMEIRA VISTA É QUASE um paraíso. Imagine que o comandante Dar­do Basadra, astronauta do século XX, sofre um aciden­te numa aterrissagem desas­trada, passa uns 13 mil anos dormindo e, quando acorda, a Terra está habitada por dois bilhões de mulheres e ele, so­mente ele, a representar o sexo masculino. Os outros machos — que quase destruíram o pla­neta — sumiram do mapa há 12 séculos. Mas, por pura in­competência da engenharia genética, as sucessivas clona­gens de mulheres estão, por assim dizer, produzindo espé­cimes de qualidade inferior. E cabe a Basadra, portanto, for­necer sêmen para a perpetua­ção da humanidade.
   Entretanto, com Basadra preso e disputado por grupos inimigos de mulheres histéri­cas, a história muda. Ou reco­meça. Daí em diante, bem, há que se ler “Éden 4”. Não dói. Como nos outros livros de Ale­xandre Raposo, a narrativa desce como um bom chope, e chegar ao fim da dose é inevi­tável. Várias doses, neste ca­so, pois agora Raposo apre­senta uma coletânea de 15 contos fantásticos. Sempre — e ainda bem — com humor.
   Como em seus dois roman­ces anteriores, Raposo mostra que co­nhece a manha de contar uma história, curta ou não. Se os romances ganhavam corpo à medida que o enredo se impunha, os contos ga­nham o leitor logo de imedia­to. Não seria essa uma das ca­racterísticas do bom conto?
   Mais que isso, Raposo se sente bem à vontade na hora de criar situações (aparente­mente) absurdas ou (por en­quanto) impossíveis e apresen­tá-las sem preocupação com propostas estéticas ou teóricas intrincadas, camuflando sub-textos e outras coisas do gêne­ro, que em geral interessam a muito poucos leitores qualificados. É nítido que Raposo es­creve seus textos para se en­treter com as palavras, e quer que seus leitores façam o mes­mo. Consegue, sem dúvida.
   Os contos curtos dão bons exemplos de como Raposo mantém um pé no cotidiano e outro sabe-se-lá-onde. Em “De olhos bem abertos”, por exem­plo, o mote é a ligação miste­riosa entre um seqüestrado na Baixada Fluminense e um me­nino doente das idéias, que ajuda a libertar a vítima. Intri­gante, assim como “Justiça”, desaconselhável para estôma­gos mais fracos. E “Ambulan­te” dá uma versão bem plausí­vel do futuro daqueles sujeitos simpáticos que entram em ônibus para vender balas.
   Talvez distraidamente, al­guns contos escondem algu­ma poesia, alguma melancolia, quando abordam a solidão, a morte, a saudade. Mas sem frescura. Em “Ano-bom”, um busca-pé tagarela invade o apartamento de uma senhora viúva para salvá-la da morte. Na verdade, é seu marido, morto há alguns anos, que vai levá-la de vez para outro mun­do. “Succubus”, “A onda” e “O Peixe-Rei” também merecem a atenção do leitor, sem favor al­gum.

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